terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Sobre a minha poesia, escrito por Henrique Manuel Bento Fialho



Dois livros de António Ferra , próximo convidado de Diga 33 – Poesia no Teatro. Dia 27, às 21h30, na sala

 Estúdio do Teatro da Rainha.

Dois livros bastante diferentes um do outro, publicados ambos este ano: “A Poesia Ri Unida” (Eufeme, Maio de

 2022) e “Lengas e Narrativas” (Edições Húmus, Junho de 2022). Comecemos pelo primeiro. Tal como o título

 indica, num humor desimportantizante característico do autor, trata-se de uma reunião, não da obra anteriormente

 editada em livro, mas de poemas dispersos por revistas publicadas entre 2009 e 2021. A excepção é um inédito

 intitulado “Dores”, poema pungente em que o mal-estar contagioso da actualidade vem à tona com fúria

 desmedida: «e eu sem potência para apagar filhos da puta» (p. 37). Não é comum nesta poesia temperaturas

 coléricas tão elevadas, sendo mais frequente o recurso ao riso enquanto sabotagem da realidade decadente e de

 um quotidiano pulverizado de personagens por vezes picarescas, noutras ocasiões risíveis, amiudadamente

 desvalidas. Portanto, a poesia que ri neste volume transborda os domínios da ironia e da sátira reconhecíveis

 noutros momentos da obra de António Ferra (n. 1947). Mantém-se, no geral, a paisagem suburbana enquanto

 palco privilegiado das observações do sujeito poético, mergulhado num “modo funcionário de viver” onde

 recolhe quadros de uma actualidade estrangeirada. O teatro é o da «tirania / num campo de refugiados

 suburbanos» (p. 11), por vezes em poemas sequenciais que retratam com linguagem militantemente coloquial 

«o constrangimento dos sonhos, / a severidade das sombras» (p. 48).

Dá-se especial atenção nestes poemas aos pobres, aos excluídos, aos exilados, aos humilhados e ofendidos, a essa

 massa de gente infinda usada e usurpada pelas forças que dessa gente se servem esgotando-a, tornando-a

 impotente e incapaz. É curioso, mais ainda pela dispersão inerente ao conjunto, como em diversos destes poemas

 surge essa imagem de fraqueza que vai do sentimento de «culpa de não combater» (p. 11) à falta de «voz para

 gritar a injustiça» (p. 48), desembocando no apelo quase desesperado do poema “Contaminação”: «não feches o

 riso / que se abre nas tuas mãos abertas, / não feches o grito de revolta / quando a janela se abre aos odores de um

 fogo extinto» (p. 52). Uma dúvida a esclarecer: o riso é arma ao serviço da revolta ou solução para a impotência?

Bem diferente, em todos os aspectos, é o segundo livro acima aludido, introduzido por uma explicação prévia à

 laia de prefácio: «Trata-se de poemas com deliberada intenção de trazer à luz os mais sombrios actos criativos —

 e caritativos — das palavras, dançando ao ritmo cardíaco dos versos estampados, não negando, todavia, a forte

 influência de uma corrente barroca, e neoclássica, surrealmente presente nos critérios de recolecção dos versos

 que integram a antologia “lengas e narrativas”». Neste caso, o espaço de representação confunde-se com a pura

 experimentação formal. Mais maneiristas do que barrocos, estes poemas afirmam-se pelos desequilíbrios, pelos

 exageros expressivos, aqui grotescos, acolá burlescos, gozando de uma variedade (in)formal que vai da

 redondilha à canção. São experiências lúdicas com palavras, a linguagem poética cedendo ao gozo dos efeitos

 fonéticos — «a salsugem dos barcos / a penugem dos braços» — e polissémicos, jogo que não prescinde do seu

 inventário intensivo de caricaturas: «o pobre de porshe» (p. 10), «o rico sem cheta» (p. 12), «os ais obscenos / de

 suínos urbanos» (p. 31), «o mendigo enganado / o bardo e o frade / de cotão no umbigo / e espinho do cardo // o

 carneiro inchado / a donzela porreira / de seio fanado / e liga de freira // o cilício de nastro / o amante filtrado / o

 cu de alabastro / da alcoviteira» (p. 41).

Ao barroco foi António Ferra buscar certa pompa para a desmontar e desfazer ironicamente, nomeadamente ao

 minar modelos métricos, ao grafitar o luxo das imagens com o corriqueiro, apostando em conceitos rebuscados e

 títulos extensos: «de autor anónimo (sec. XVIII) publicado na Gazeta «O Furjão» em depósito na biblioteca da

 Junta de Freguesia de Albergaria de Loivã» (p. 33). Tudo isto é escárnio da pompa e da circunstância, dos efeitos

 supérfluos e palavrosos, da cagança espaventosa e da solenidade que, em pleno século XXI, se conserva intacta

 no espírito e nos comportamentos de uma horda de artistas eximiamente distribuídos pelas diversas instituições

 nacionais. Fique, a título de exemplo, a «efémera fama de um opinion maker»:


a efémera fama

tua alma aclama


na tua lama

a tarântula branca

anémona plana

numa feira franca


tua alma acalma

a efémera fama

abre o melodrama

alimenta a chama

da boca que trama


tua alma aclama

a tua boca brama

tua efémera fama


quinta-feira, 7 de outubro de 2021

nota biográfica




António Ferra nasceu no Porto em 1947 e vive em Lisboa. Para além da docência no ensino secundário, fez formação de professores e de profissionais de saúde na área da animação comunitária, dramaterapia/expressão dramática e da dinâmica de grupos e análise organizacional. Foi leitor em Cardiff, na Universidade do País de Gales, e formador de professores na República da Guiné Bissau, donde nasceu um livro. É artista plástico e escritor, tendo publicações em diversas áreas, nomeadamente a pedagogia e a literatura infantil, com relevo para o teatro, em que é autor premiado (Caleidoscópio, 1980 ). Desde muito jovem esteve ligado ao jornalismo, tendo publicações dispersas por vários jornais e revistas, nomeadamente “O Jornal da Educação”, desde o início até à sua extinção como publicação autónoma. Tem vindo a cultivar um estilo diarístico e de reflexão num work in progress que dá pelo nome de “O funcionamento de certas coisas” (http://funcionamento.blogspot.com/)




Obras Publicadas:




Teatro e contos para a infância e juventude: Zé Pimpão, João Mandão e os Sapatos Feitos à Mão (abrir) - 1978 (esgotado)




A Canção de Começar (abrir) – 1979 teatro (esgotado)




Caleidoscópio (abrir) - (Prémio de Teatro da Secretaria de Estado da Cultura) 1980 teatro (esgotado)
























Pedagogia:




Pedagogia Centrada Na Pessoa (abrir) (duas edições, 1981, 1992)












A Casa-Mãe (abrir) - Romance Pedagógico - 1998








Poesia e Pintura:




Norte (abrir) - 1986, plaquette (fora de mercado)



O Desemprego dos Dias (abrir) - 2005, palquette (fora de mercado)








Poesia:

















a primeira pedra, 2023




Bluff - 2019 (abrir)

periferias da luz (abrir)


a primeira pedra, 2023

Ficção
:


Crónica dos Novos Feitos da Guiné
(abrir)
– 1996


O Vermelho e o Negro (abrir) - 2004

Olhar o Silêncio (abrir) - 2005

Água e Fogo (abrir)
- 2006

Silêncios Comprados silêncios comprados) - 2007 (ver)

Estação Suspensa
(abrir) - 2009






Bio grafia (abrir) 2010








Participações:




Nas Antologias de poesia da D .Quixote: “Ao Porto” , “Encantada Coimbra” e “Algarve Todo o Mar”




Na colectânea de Contos “O Homem em Trânsito” da editora Indícios de Oiro




Na Antologia de Poesia "Os Dias do Amor" da editora Ministério dos Livros
Na Antologia de Poesia "Divina Música", Conservatório de Música de Viseu Na Antologia "só à noite os gatos são pardos", Associação de Protecção Animal Na Revista de Poesia "Saudade" Referências: Dicionário de Literatura Infantil Portuguesa, António Garcia Barreto – Campo das Letras, 2002 O Teatro Para Crianças em Portugal, Glória Bastos, (abrir) Caminho, 2006
actividade de artista plástico (abrir)

domingo, 8 de agosto de 2021

Apresentação de «Dos livros levanta-se um pássaro», por Viriato Teles


clicar aqui para ver o texto completo

https://www.viriatoteles.net/dispersos/colaboracoes/449-dos-passaros-levantados-e-outros-voos.html

disse o Viriato Teles

Há muitos anos, no tempo em que sonhos não obedeciam às leis do mercado, houve uma espécie privilegiada de homens e mulheres que aprendeu a voar. Dirão alguns que as pessoas não voam, só os pássaros e as abelhas e os aviões são capazes de fazê-lo, mas não é verdade: há quem queira e consiga voar, voar mesmo, desafiando as leis da gravidade e da lógica do mundo.

O António Ferra faz parte desta espécie particular de gente que não se conforma com o que dizem ser o destino, nem se preocupa em viver de acordo com as tendências do momento. Escreve o que quer, como quer, e é assim que tem feito um caminho que é o dele, discreto mas consistente como conheço muito poucos. Esta é a sua forma (uma das suas formas) de voar.

Das maiores mentiras que nos contam desde há séculos é essa história de sermos “um país de poetas”. Tretas. Sim, é verdade que tivemos Camões, tivemos Pessoa, tivemos Cesário e O'Neill e Eugénio e Herberto, tivemos Guerra Carneiro e Assis Pacheco, ainda temos Alberto Pimenta. Temos, de facto, poetas maiores, mas que só o foram por terem sido capazes de pensar e sentir e viver para lá das fronteiras, quer as do país, quer sobretudo as das cabeças que vivem nele.

É isso que o António Ferra também faz, através de uma escrita clara e singular, mas nunca circular. O segredo desta escrita, da escrita do António, é que não tem segredo nenhum. São palavras diárias e comuns que ele modela com toques de magia e transforma numa poesia incomum.

E é por isso que ele é hoje uma voz única, que não procura sobrepor-se às demais – embora esteja acima da maioria delas. Como quando escreve:

Às vezes, dos livros levanta-se um pássaro,
um tanjarro, uma carriça, um papa-figos,
uma codorniz ainda selvagem,
à espera que lhe estudem
a morfologia, origem e destino

à espera que lhe expliquem
a mutação das penas.

António Ferra, o poeta e o cidadão, não quer ser capa de revista e não está disponível para a passerelle das pequenas vaidades em que se se habituou a viver uma parte não despicienda do nosso mundinho literário. Em vez disso, porque isso é que importa, procura insistentemente descobrir o “triângulo de quatro lados” de que falava Alberto Pimenta.

Claro que nada disto é novo para os amigos do António, que se habituaram a conviver com os livros que ele vai publicando, com aquele ar displicente de quem não se leva muito a sério – muito embora esta seja poesia da mais séria que conheço. Por exemplo:

Um gajo está desesperado
com uma dor na alma,
um navio atracado no peito,
e procura desesperadamente
um analgésico,
um comprimido mágico que traga a felicidade
por cinco minutos.

O pior são os efeitos secundários das metáforas.

Este livro, com este belíssimo título – “Dos livros levanta-se um pássaro” – são quarenta poemas do António Ferra que nos contam a vida, sem metáforas esdrúxulas nem palavras ocas.

Mas um livro também é um objecto, e neste caso um objecto muito bonito também, feito naquele jeito minimalista a que o António nos habituou, tanto na escrita como na pintura, para que no fim fique apenas aquilo que tem mesmo de lá estar. Isto, que parece tão simples, é afinal o mais difícil da arte – isto é que é o verdadeiro mistério da criação.

Posso dar alguns exemplos, a partir deste livro. Diz o António, na página 36:

Ferem-me os olhos incolores dos gatos
com três pernas.
Assim ficaram depois do santo ofício ordenar
a oposição entre a água e o fogo.

E noutro poema, mais adiante:

Aconselharam-me a meter a metafísica no rabo,
porque Nada é verdade,
os cães morrem a mesma morte ao longo dos séculos
e o Amor é sepultado ao lado da Fome.

E noutro poema ainda:

Já lixaram esta merda toda na
intransigência dos costumes,
na continuidade dos dias sem retorno
ao vôo das árvores migratórias.

Estes são apenas alguns fragmentos desta poesia sem lantejoulas, feita à medida do mundo, mesmo que não necessariamente a gosto do mundo.
Mas o melhor é lê-la, que é para isso que a poesia é feita. Este livro lê-se depressa, mas está longe de ser um livro apressado. Pelo contrário, é mesmo escrita de quem gosta de se demorar – sempre atento ao “funcionamento de pequenas coisas”.

Diz o António:

Perdi um pedaço de terrra
com árvores milenares e rios à alegria.
Mas ainda não desisti da escalada da montanha
com cordas de seda fina.

O segredo, digo agora eu, o segredo é capaz de ser mesmo só isto: não desistir, nunca desistir da “escalada da montanha”. Que é como quem diz: não desistir de procurar o tal “triângulo de quatro lados”.

E o António, já sabemos, é um desses que não desistem. Afinal, ele faz parte dessa espécie privilegiada e rara de pessoas que aprenderam a voar. E isso, felizmente, é coisa que não tem remédio.

Por isso, António, continua, por favor. Nunca deixes de voar, nunca deixes de te inquietar com as pequenezas do mundo. Dos livros levanta-se um pássaro, e nós com ele, certos da verdade toda que há nestes versos.
Ou, como ele escreve:

Mas alguém há-de aparecer,
podem contar comigo,
sou um gajo trabalhador, leal e de bom trato,
juntem-se à minha sorte a renascer.

Apresentação de Dos livros levanta-se um pássaro, de António Ferra
Livraria Círculo das Letras, Lisboa, 20.Mai.2017

O José Barata leu outro livro meu, »dos livros levanta-se um pássaro»

Recebi do meu amigo António Ferra mais um livro de poesia: Dos Livros levanta-se um Pássaro. Edição de autor. Há muito metier na escrita do António. Acho que perpassa neste livro o legado dos 'petits poèmes en prose'... Há Baudelaire e um Cesário Verde sem rima, na observação de uma Lisboa entre o amor e ódio; e presente, sempre, a sombra da morte, como se a vida fosse um bairro onde todos se conhecem e morrer é afinal apenas deixar de ser visto... Digo isto aqui; é o que sinto. Evitando o nosso jargão que às vezes impressiona os incautos... Mas se as coisas são simples para quê 'escondê-las' com o sedutor véu de uma qualquer meta-linguagem? A poesia do António é madura; há mão; um desencanto angustiado muito fim de século... Completamente marginal. Compreende o 'rio' mas não entre na corrente. É com muita amizade que escrevo estas palavras. O mesmo António Ferra de quem sou agente promocional como sabem...

Nota minha - ele divulga os meus videos de sátira poética no Facebook.



terça-feira, 29 de junho de 2021

A leitura amiga e sábia do José Oliveira Barata

 


Palavras de Drummond:

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Mais do que uma receita é 'arte poética'; indica. O meu amigo António Ferra, que tanto diverte os nossos amigos com uns videozinhos sobre 'póesia', só pode chegar à 'desconstrução' porque é de facto 'poeta'. Tem a 'techné', a "ars" que lhe permite recusar o 'cliché' para penetrar no mundo das palavras. Picasso desenhava o 'clássico' e desenhou os Pierrots que todos conhecemos... O António acaba de publicar um livro de poesia: Estrada de Cinza, na editora Eufeme. Chego a Cajadães e tenho este livro; cuidado na simplicidade das coisas amadas e dadas do coração. Um diálogo por onde passa a ternura, um certo 'spleen', um baudelairiano 'mal du siècle", mesmo quando toma como mote as nossas canções trovadorescas; sempre o amor: contemplado e feito. Também a desilusão que a vida nos vai mostrando e que nos faz sussurrar "game over". "...e a sensação de ter jogado tudo/ com a tenacidade amarga das palavras/que só em balões atingem o sucesso/ Game Over/
Caro António, obrigado pelo livro que nos deste.Aqui eu a Manuela agradecemos. Continuaremos a estrada, deixando por momentos uma marca; breve, mas nossa para se desfazer com uma qualquer brisa que sopre a cinza... Só isto. E o abraço.